
Projeto pioneiro na Europa propõe dar às pessoas o controle legal sobre seu corpo, rosto e voz em conteúdos gerados por IA. Brasil ainda carece de uma regulação específica.
A Dinamarca acaba de lançar uma proposta legislativa ousada que pode se tornar um marco na proteção de direitos individuais na era da inteligência artificial. O país escandinavo propôs, no início de julho, uma mudança significativa em sua legislação de direitos autorais: dar aos cidadãos direitos sobre sua própria imagem, voz e características faciais, com o objetivo de conter os abusos causados por tecnologias de IA, como os deepfakes.
A proposta partiu do Ministério da Cultura dinamarquês e já conta com apoio da maioria parlamentar. O projeto prevê que qualquer pessoa poderá exigir a remoção de vídeos, fotos e áudios produzidos por inteligência artificial sem seu consentimento. Em alguns casos, a vítima poderá ainda solicitar indenização.
Mais do que um ajuste técnico, trata-se de um reconhecimento inédito: o corpo, a voz e o rosto passam a ser considerados uma forma de autoria pessoal, com proteção similar à de obras intelectuais.
“As pessoas estão sendo copiadas digitalmente, e isso pode ser usado para muitas finalidades ruins. Não estou disposto a aceitar isso”, afirmou o ministro da Cultura Jakob Engel-Schmidt, em entrevista ao jornal The Guardian.
Deepfakes na mira – A proposta surge em meio ao crescimento vertiginoso dos deepfakes, que são montagens realistas criadas por IA que imitam aparência, voz e gestos humanos. Casos como o vídeo falso do Papa Francisco usando um casaco de grife, que viralizou como se fosse verdadeiro, ilustram o poder de engano dessas tecnologias.
A lei dinamarquesa busca justamente frear esse tipo de manipulação, conferindo proteção jurídica preventiva a qualquer cidadão, e não apenas a figuras públicas. Artistas também estão contemplados: performances de atores, cantores e apresentadores, por exemplo, não poderão ser replicadas por IA sem autorização explícita.
Ainda assim, o projeto faz ressalvas para garantir a liberdade de expressão. Conteúdos satíricos, humorísticos ou paródias continuarão permitidos.
A proposta será submetida à consulta pública ainda antes do recesso de verão na Europa, e a expectativa é que seja votada no segundo semestre de 2025. Se aprovada, a Dinamarca se tornará o primeiro país europeu a reconhecer legalmente o direito autoral sobre a própria identidade digital.
O governo já indicou que, durante sua próxima presidência rotativa do Conselho da União Europeia, usará a posição para propor a medida como padrão continental. A ideia é inspirar legislações semelhantes em outros países do bloco, criando uma frente europeia de proteção contra abusos de IA.
Além disso, plataformas digitais que não cumprirem as determinações poderão ser multadas severamente. Em casos extremos, a questão poderá ser encaminhada à Comissão Europeia.
E o Brasil?
No Brasil, o direito à imagem, à voz e à identidade é protegido como um direito da personalidade, conforme previsto na Constituição (art. 5º, X) e no Código Civil. No entanto, ainda não há legislação específica que trate de conteúdos gerados por inteligência artificial, nem que vincule esses atributos ao direito autoral, como propõe a Dinamarca.
Hoje, vítimas de deepfakes ou montagens digitais não consentidas precisam recorrer a processos cíveis ou criminais com base em danos morais e uso indevido de imagem , um processo lento, reativo e pouco eficaz diante da velocidade das redes.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu recentemente que plataformas digitais podem ser responsabilizadas por conteúdos ilegais publicados por terceiros, mesmo sem ordem judicial prévia, desde que tenham sido notificadas e não tenham removido o conteúdo. A decisão rompe com a lógica da “neutralidade das plataformas” e impõe a elas deveres concretos de moderação e prevenção de danos, sobretudo em casos de discurso de ódio, fake news e ataques à honra.
Essa decisão do STF dialoga diretamente com a proposta dinamarquesa em ao menos dois aspectos fundamentais:
- Ambas estabelecem que as plataformas têm responsabilidade legal diante de conteúdos que violem direitos individuais.
- As duas iniciativas reconhecem que o ambiente digital precisa de regras claras para proteger a integridade das pessoas, especialmente diante de novas tecnologias que manipulam a realidade.
Diferenças:
- A decisão do STF é jurisprudencial, fruto da interpretação constitucional, e não se dirige especificamente aos usos da IA ou deepfakes. Já a proposta dinamarquesa é legislativa, específica e preventiva, com foco direto na atuação das inteligências artificiais generativas.
- O STF trata de conteúdo prejudicial já existente, exigindo reação após notificação. A Dinamarca quer garantir um direito autoral prévio sobre rosto, voz e corpo, permitindo controle sobre a própria representação digital antes que o dano ocorra.
- A lei dinamarquesa propõe um novo tipo de direito subjetivo sobre a identidade, enquanto o Brasil opera apenas com base nos direitos da personalidade e em sanções após o fato.
Com o avanço acelerado da IA e a crescente sofisticação dos conteúdos manipulados digitalmente, a proposta da Dinamarca pode servir como modelo inspirador para o legislador brasileiro, unindo princípios constitucionais já existentes com novas garantias para o futuro digital.
Texto: Bruno Nasser